Eu passo minhas noites com a
insônia dos perdedores. Não faz tanto tempo assim que começou, mas o ranço da
derrota me acompanha desde então. Não é fracasso econômico... tampouco de nível
social ou coisa do tipo. De fato, eu conquistei a série de pequenos troféus que
homens de classe média almejam. Mas eles não me bastam. Mulher, filhos, carro,
emprego respeitado e casa cara não valem de nada. Não sem o prêmio real. Sim, é
possível ser um “vencedor” e se sentir um nada.
Há dias fiz 41 anos. Seguindo uma
estatística torpe, metade (ou mais) do que viverei se foi. Quando era jovem eu
sempre me imaginei um escritor. Não qualquer escritor, que fique claro: o tipo
certo de escritor. Não um vomitador de Best-Sellers, mas alguém com algo a
dizer. Bem, metade da minha vida se foi e eu cheguei a conclusão de que não
tenho nada de relevante a ser dito. Nada que alguém queira saber.
Durante minha existência comecei
diversas obras, em diferentes etapas da vida. Todas elas foram tratados como
amores de verão. A paixão ardia por um tempo mas não durava o bastante pra
virar algo concreto. Todas elas viraram pó, pedaços pequenos do passado que eu
evito olhar pra não sentir vergonha. Algumas noites eu tento reencontrar esses
amores, mas tal qual contrapartes reais essas relações não tem força o bastante
para vingar. São apenas cadáveres escondidos nas paredes da mente.
Mas o sono não vem mais... Eu
preciso dormir pra manter o castelo que construí sobre os cadáveres das minhas
idéias. A maldita vidinha de classe média precisa ser alimentada pelo meu sono
correto e meu vigor matinal. Mas eu não durmo. Eu me sirvo de whisky e deito na
cama esperando a embriagues como sonífero. Mas o sono não chega, e nos
devaneios de insônia me vem uma idéia. Mas eu não quero uma. Não preciso de
mais cadáveres, e tento não gerar mais um.
Não funciona.
Eu chego a cochilar, mas sou
acordado com o sonho. Eu olho pro relógio e calculo quanto eu já perdi para o
dia de amanhã, mas isso não basta pra me manter na cama. Eu preciso escrever. E
como um marionete de si mesmo, eu escrevo até meu corpo estar em frangalhos.
Durmo duas horas apenas.
Eu preciso recuperar o sono
perdido agora. Tenho problemas demais pra resolver pra dar atenção a uma nova
idéia sem valor. Ciente disto, deito mais cedo na cama. Minha mente está em
fúria, mas meu corpo se rende ao cansaço. Mas não por tanto tempo. Eu sonho de
novo. Deitado em minha cama, um cadáver dilacerado se debruça sobre meu peito e
se debate. Ele clama o seu direito de nascença, e me força, em pânico a acordar.
Eu me levanto e me ponho a escrever.
Os dias seguem nesta rotina
anormal. Meu corpo absorve de modo cada vez mais brutal o cansaço, mas o
cadáver nunca me deixa dormir. Qualquer pequeno cochilo me desperta, com a criatura
horrenda clamando por sua existência. Eu não consigo saber o real impacto desta
rotina na minha vida comum... O cansaço acumulado altera minhas percepções, de
modo como se só as noites tivessem valor. Nada mais importa, a não ser minha
obra.
E após noites e noites de
pesadelo e fúria, aquilo que era apenas retalhos se torna completo. Ele me
forçou a preenche-lo, de modo que nenhuma outra criação fizera antes. Completo,
ele clamava pra ser apresentado ao mundo.
Agora eu sacrifico meus dias.
Percorro labirintos editoriais para soltar a minha besta. Não é fácil. Nas
entranhas de um sistema falho eu me sujo dia após dia. Conseguir um editor é
uma tarefa hercúlea tão desgastante quanto gerar a criatura. Mas ela não me
deixa desistir. Ela é grande demais para ficar apenas a minha vista... e finalmente
ela acha o editor certo. Maravilhado e aterrorizado com minha cria, ele aceita
prontamente publicá-la. Ele sabe que todos que a verem não serão mais os
mesmos.
E não são. As primeiras criticas
surgem timidamente, entravadas na trágica mecânica que dificulta autores novos.
Mas elas avançam como tsunamis, indo das ondas pequenas para o implacável. Um a
um, todos os críticos importantes são subjugados. E sobre a rendição deles,
criaturas menores chamadas leitores são abatidos em sequencia. Criei um monstro.
Por agora, desfruto o prazer de
ter pego o troféu que faltava. Quase perdi os outros no processo, mas recuperei
tudo com a mão vencedora. Eu tenho tudo. A fama discreta me proporciona o
glamour que somente os melhores escritores possuem. O dinheiro que ganho não se
compara ao de Best-Sellers popularescos, mas me possibilita o luxo adequado
para aqueles que não ligam pra futilidades. Sobre o ombro do Titã, eu me torno
protagonista da biografia que queria escrever pra mim.
Mas o tempo passa...
Todos se perguntam quando que uma
nova cria irá surgir. Faz tempo demais que meu primogênito veio ao mundo, e
começam a questionar se ele seria uma estrela solitária. Não. Ele não pode ser
o único. Eu preciso de mais...
Assim, abandono o bem estar da
colheita e me entranho novamente nos porões da criação. Me isolo novamente,
tentando criar a angustia necessária que gera arte. Mas nada me vem. Nada bom o
bastante. Desesperado, eu revisito antigos amores tentando ver se algum deles
pode vingar novamente. Em vão. Nada ali pode crescer tanto quanto o Titã. Eles
se debatem em desespero, esmagados pelo peso daquele que é seu irmão mais novo.
Um a um, eles não existem mais.
Apavorado, me vejo novamente
prisioneiro da insônia e do álcool. Como não tenho mais a rotina de um emprego
comum, isto não é mais um problema real. É fácil perder a noção do tempo por
dias sentado a frente de rascunhos e Whisky. De fato, eu mal faço idéia de
quanto tempo se esvai nesta rotina. Mas coisas começam a acontecer.
Minha mulher anuncia o desejo de
divorcio. Eu nem respondo, pois estou ocupado tentando criar um capitulo. Tenho
advogados para cuidar disso pra mim, e eles fazem bem o seu serviço. As
crianças vão com ela. Bem, um deles não é mais criança... tem 16 anos e
apresenta sinais de que me odeia. Mas eu não tenho tempo para chiliques de
adolescentes, e brindo a rebeldia dele com mera indiferença. A menor ainda vem
me visitar por uns tempos, mas ela percebe que tenho coisa mais importante para
fazer e finalmente se afasta.
Eu paro de contar os anos, mas
ainda me vejo sozinho e cercado de rascunhos incompletos. A miséria econômica
não me encontra, pois o gigante continua a fazer sua mágica ano após ano. Ele
se aloja no panteão da literatura universal, referenciado em livros escolares e
morando na constelação das obras primas. Eu me torno um fantasma, cada vez mais
hermético na minha tentativa de gerar algo novo. E as vezes, só as vezes, novas
idéias surgem e se debatem pra nascer. Mas a noite as leva embora, em pesadelos
horríveis como os que deram origem ao Monstro. Tal como Cronos, o Titã devora
minha novas crias em espetáculos grotescos. Algumas se debatem mais para
morrer, mas nenhuma delas tem potencial o bastante pra sobreviver a ele.
E eu também não sobrevivo.
Agonizando, anos depois de ter lhe dado
origem, sentado pateticamente numa escrivaninha lotada de natimortos, eu sinto o
resto de vida que eu tinha esvair. Eu nem ao menos luto contra isso. Perdi
batalhas demais para não aceitar uma ultima derrota. Em meus momentos finais,
eu o vejo: gigante, imponente, olhando friamente para mim... Ele sabe que
viverá pra sempre.
Um comentário:
Muito bom, parabéns. Também dei a luz ao meu primeiro titã e estou terminando um cíclope, mas acho que será só.
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